CURADORIA IRENE CAMPOLMI
In the First Place, título da edição do W&T de 2022, propõe uma reflexão sobre o que emerge e existe em primeiro lugar, repensando narrativas atuais e a posicionalidade enquanto elemento fundamental na definição de sistemas de poder, conhecimento e identidade. Ao questionar construções temporais e espaciais divergentes, e reconhecendo múltiplas vozes, presenças e posicionamentos, o programa deste ano pensa a palavra, o discurso, o som e a música enquanto formas de viajar pelo tempo e pelo espaço, propondo novas perspectivas e leituras sobre os espaços que habitamos - físicos ou metafóricos, e as relações que estabelecemos entre diferentes geografias, recursos, espécies e ideias. O tema do festival desdobra-se em vários projetos espalhados pela ilha de São Miguel.
A vaga apresenta uma exposição coletiva com obras da artista anishinaabe/francesa Caroline Monnet e da artista Laura Ortman, do artista ganês/britânico Larry Achiampong, do artista inuíte Uyarakq e da artista nigeriana/norueguesa Linda Lamignan.
Ao entrar no átrio da vaga, deparamo-nos com duas bandeiras dispostas em formato de seta, de Larry Achiampong. O título da obra, Pan African Flag For The Relic Travellers' Alliance, é parte de um projeto multidisciplinar intitulado Relic Traveller, que se baseia numa perspetiva pós-colonial fundamentada pela tecnologia, agência e narrativas de migração. Achiampong opta por dar foco a cores pan-africanas que exprimem simbolicamente as várias identidades diaspóricas africanas: verde, preto e vermelho, que correspondem à terra, às pessoas e às lutas que o continente enfrentou, enquanto que o dourado representa um novo dia e prosperidade. As duas bandeiras apresentadas são apenas uma seleção de uma coleção maior, onde o desenho de cada bandeira apresenta 54 estrelas que representam os 54 países africanos. Achiampong transformou estas cores Pan-Africanas em símbolos e formas sugestivas de vários elementos: comunidade, ascensão, movimento e esquadrão. Através deste trabalho, o Futurismo Pan-Africano - nomeadamente, a ideia de unir nações africanas - não se enquadra como uma visão utópica, mas como um projeto que só pode acontecer se os abalos ocultos da história colonial ocidental forem reconhecidos.
Do mesmo modo, o trabalho de Uyarakq aborda modos de reconhecer histórias negligenciadas, criticando indiretamente a forma como o discurso pós-colonial tende a ignorar estruturas concretas de apoio e reforço dos direitos indígenas. Concebida sob a forma de postais, uma lembrança que todos possam levar para casa enquanto recordação da exposição, a obra critica a forma como os discursos pós-coloniais têm, em alguns casos, histórias e identidades adequadas para os representar.
A exposição continua no interior com duas instalações audiovisuais: Exquisite Score de Caroline Monnet em colaboração com Laura Ortmann, e Water Get No Enemy de Linda Lamignan em colaboração com Gyeongsu, Serena Coelho e Itohan Emonvomwan.
Materializando-se através de várias paisagens e locais, Exquisite Score resulta da correspondência que Caroline Monnet e Laura Ortmann mantiveram durante meses a partir das suas casas, em Montreal e Nova Iorque respetivamente, durante a pandemia. Através de trocas de cartas, que também incluíam imagens de projetos anteriores, gravações de áudio de objetos quotidianos, e excertos musicais explicitamente compostos para a ocasião, as duas artistas exploraram, metafórica e materialmente, a topografia do território que se estendia entre elas. Monnet utiliza as artes visuais para demonstrar um forte interesse em comunicar ideias complexas em torno da identidade indígena e da vivência bicultural através da análise de histórias culturais. Criou uma assinatura ao trabalhar com materiais industriais, combinando o vocabulário das culturas visuais populares e tradicionais com os tropos da abstração modernista para criar formas híbridas únicas.
Na última sala, encontramos a instalação Water no get enemy, uma colaboração entre a artista norueguesa nigeriana Linda Lamignan, a artista e videógrafa nigeriana alemã Itohan Emonvomwan, Gyeongsu, e artista e designer brasileira, Serena Coelho. O título é inspirado por uma canção Fela Kuti baseada num provérbio iorubá, um hino ao animismo – uma filosofia que acredita que todas as coisas na natureza estão vivas e animadas e são, portanto, capazes de influenciar o ser humano em várias formas. Tendo em conta esta perspetiva animista, Lamignan dá atenção ao ananás, um fruto cultivado nas ilhas dos Açores, particularmente em São Miguel, para explorar a sua história enquanto uma planta nativa originalmente exportada do Brasil pelos portugueses durante o período colonial, e importada para os Açores e Nigéria, onde também se tornou uma forte parte da indústria de exportação. Recolhido como uma raridade, arrancado do solo nativo e transportado para uma terra estranha, para alguns o ananás tornou-se um sinal de riqueza da Europa de elite e rica, e para outros um símbolo de dominação colonial e apropriação de identidade. Water no get enemy pretende repensar o seu legado colonial e capitalista através da análise de outras propriedades da planta e dos frutos.
O ananás torna-se um testemunho vivo de abuso colonial, apropriação, apagamento e recontextualização, ao ser extrapolado a partir do seu território nativo brasileiro, onde o fruto é endémico (de onde veio em primeiro lugar). As viagens e histórias encarnadas pelo fruto através do seu percurso transatlântico, tornam-se ainda uma oportunidade de criar um mapa das biografias e histórias pessoais das artistas. Da Nigéria ao Brasil, encontram nos Açores um ponto de encontro e ligação a partir do qual recontam um outro lado da história, eliminando limites entre realidade e reflexão, e afastando-se de uma narração linear. Cruzando projeções e luz, enche-se o espaço com fragmentos de memória, emoção e imaginação. Alterando superfícies com luz colorida e uma sensação de profundidade. Uma forma de transformar o espaço e, por sua vez, de nos transformarmos a nós próprios.